A Ilha do Príncipe tem praias divinais, paisagens virgens, silêncio e paz absolutos. Tudo muito giro, mas para lá chegares tens que te meter numa caixinha de fósforos com asas e rezar para que as leis da física continuem a desafiar as leis da lógica. Depois de meia hora aos solavancos aterrei (inteira) num mini aeroporto.
Se São Tomé já não é particularmente barato, o Príncipe, uma ilha dedicada ao turismo de luxo, ainda é menos. Como o transporte do aeroporto até ao meu acampamento me iria custar mais do que três dias de estadia (tinham-me pedido 50€), decidi ir a pé. 7km com uma mochilinha às costas não faria mossa.
Boleia 1 e 2: Balalai e deslumbramento
Já tendo estudado o caminho e com o percurso no Google Maps, estava confiante que lá chegaria em menos de duas horas. Pequeno problema: no avião desliguei o telemóvel, que tinha um novo cartão SIM local, e quando o voltei a ligar não sabia o PIN. Tinha o telemóvel bloqueado, inútil, com um cartão que não conseguia remover. Usando a memória, fiz-me à estrada achando que alguém me ajudaria caso fosse necessário. Estava pronta para a aventura!
A primeira coisa em que reparei foi na calmaria que se vive no Príncipe. Com apenas 9000 habitantes, há pouca gente nas ruas. Passados uns vinte ou trinta minutos de caminho, recebo a minha primeira oferta de boleia. Nem sequer estava a pedir! O rapaz ia para a capital, mas até lá passava pela estrada onde eu tinha de virar. Meti-me na parte de trás da mota e seguimos juntos durante alguns minutos para poupar as pernas.
Já não muito longe do meu acampamento, cheguei a uma bifurcação onde não sabia bem para onde tinha que virar. Decidi esperar um pouco e vi uma motinha a vir na minha direção. Pedi ajuda e não é que o condutor era o “Balalai da Polícia Judiciária?!”. Isto para mim era chinês, mas felizmente ali toda a gente se conhece e ele lá me levou direitinha à “porta” do Salaszoi.
Uma tenda e uma família
Fui recebida por um Ronaldo sorridente que me apresentou à minha tenda para as próximas três noites. Tinha escolhido este “Wild Camping” porque era o alojamento mais barato do Príncipe, cerca de 18€ por noite. Quando chegámos à clareira onde ficam os bungalows e as tendas nem queria acreditar: aquela tinha de ser uma das melhores vistas do mundo! Fazia-me lembrar a famosa vista do Pão de Açúcar no Brasil, mas intocada. Uma floresta impenetrável que acaba no mar, onde o sol se põe. Esta parte da Ilha do Príncipe é fora do roteiro turístico, por isso não fazia ideia de que tal lugar existia.
Nessa noite, na companhia de um casal italiano/espanhol e do resto do staff do Salaszoi, percebi que ia ganhar uma família. A Marizete, que transportara o nosso delicioso jantar na cabeça, o Vivi que era um belo kizombeiro e conhecia toda a gente e a Linda que também ajudava na cozinha e nas limpezas.
À conversa, com as lanternas do telemóvel a servirem de iluminação, senti que aquele era o melhor lugar do mundo.
Percorrer o Príncipe a pé
O dia acordou mal humorado, com uma tempestade e chuva torrencial que ameaçavam os meus planos de ir descobrir as praias do nordeste a pé. Como qualquer bom país tropical, a bonança não tardou em chegar. A seguir ao pequeno almoço em casa da Marizete, partimos: eu e mais os outros dois malucos a quem vendi a ideia de fazer 25+ quilómetros a pé num dia.
Demorámos cerca de duas horas e meia até avistarmos a idílica Praia Banana. No Hotel Belo Monte (um dos dois ou três resorts de luxo no Príncipe), há um miradouro com uma vista espectacular que só aguçou ainda mais o nosso desespero por um banho depois de tanto suor.
Até lá tínhamos passado por várias pequenas aldeias com casinhas de madeira coloridas, uma Roça abandonada que conseguimos visitar (a Roça Paciência) e muita floresta. Ainda vimos algumas crianças a voltar da escola. Nem sei quantos quilómetros têm de andar para lá chegar!
Esta região do Príncipe é maravilhosa e merece mais tempo a marinar nas suas águas mornas. A Praia Boi, Praia Macaco e Praia Grande estão já ali ao lado, mas por termos feito tudo a pé, não tivemos tempo de as visitar.
O longo caminho de regresso estava à nossa espera.
Boleia 3 e 4: Reencontros e uma noite de festa
Já tínhamos feito a subida tortuosa de volta ao Hotel Belo Monte e íamos bem encaminhados quando ouvimos um carro atrás de nós. Dissemos todos “Vamos pedir boleia!” e qual não foi o meu espanto ao perceber que tinha conhecido dois dos rapazes que vinham no carro no voo de Lisboa para São Tomé! Saltámos para a caixa do jipe e lá fomos até os nossos caminhos divergirem.
De volta à caminhada, conseguimos encontrar um supermercado que não tinha água, mas tinha Compal de tudo e mais alguma coisa. Depois de andarmos mais alguns quilómetros, tentámos pedir boleia a outro jipe que ia a passar por nós, e não é que conhecíamos o condutor outra vez?! Era irmão do Vivi! Realmente, o Príncipe é uma pequena aldeia.
Quando finalmente chegámos ao acampamento, já perto do pôr do sol, o banho frio de chuveiro improvisado ao ar livre parecia um spa de luxo.
Menos mal cheirosos, juntámo-nos à nossa recém família para um jantar chez-Marizete: uma sopa maravilhosa, uma moqueca de peixe que não lhe ficava nada atrás e fruta tropical. Qual Avilez qual quê? A acompanhar, vieram as caipirinhas do Ronaldo e acabámos todos a dançar kizomba. Foi a melhor noite da minha viagem.
Labirintos sofisticados, mosquitos e lugares secretos
Os meus parceiros de caminhada despediram-se de manhã cedo e como tal tinha o dia para mim. Saí em direção à Roça Sundy para um dia a fazer aquilo que melhor se faz numa ilha paradisíaca: nada!
A Roça Sundy é das mais bonitas e bem preservadas do país, sendo hoje em dia parte hotel de luxo, parte casa para 133 famílias que vivem nas sanzalas da roça. Parece que em breve o grupo hoteleiro HDB vai construir novas casas para estas famílias, o que significa que esta roça histórica vai provavelmente passar a ser de acesso exclusivo a turistas, tal como algumas praias já o são. É triste ver esta privatização e segregação a acontecer nos dias de hoje.
O acesso à Praia Sundy é feito através de um caminho pela floresta muito mal indicado. Creio que a ideia seja desencorajar quem não é hóspede a visitar a praia. Com a ajuda da vista satélite do Google Maps e usando estrados de madeira que possivelmente são propriedade privada, cheguei a uma praia absolutamente VAZIA onde as únicas pessoas que se viam aqui e ali eram funcionários do hotel.
Deixo o link para o site do resort na praia porque parece um set de filme.
Como o tempo estava meio farrusco e não apareceu ninguém nas horas que lá passei a ler e a nadar, até parecia que tinha pago 1100€ por noite pelo privilégio de estar ali. Quando a chuva apareceu, sentei-me numa das poltronas cobertas disponíveis e pus-me a imaginar que tipo de pessoas seriam os habituais clientes daquele resort.
Na subida de regresso senti que estava picada por mosquitos e decidi parar para pôr repelente. Asneira! Em dois segundos estava coberta de mini assassinos com asas sedentos pelo meu sangue. Acelerei o passo, mas o mal estava feito: tinha uma colecção de babas infinita!
Mas as caminhadas florestais ainda não tinham ficado por aqui. De volta ao acampamento, o Ronaldo levou-me até à Praia da Pedra Furada, que ficava mesmo por baixo do acampamento. Mais um lugar intocado com uma vista incrível sobre a Baía de Iola.
Boleia 5 e despedidas
A minha estadia neste pedaço de paraíso tinha chegado ao fim. É daqueles lugares tão remotos que uma pessoa nunca sabe bem quando (ou se) vai voltar. Apesar da beleza desta pequena ilha, a minha imagem mental do Príncipe parece quase um quadro. Uma família um pouco disfuncional, mas com sorrisos na cara, à volta de uma mesa a ouvir música e a brincar uns com os outros.
A minha última boleia foi a caminho do aeroporto. Mais uma vez, foi só pedir!
Uma nota sobre a realidade de viver no Príncipe
Sinto que às vezes temos uma certa tendência a glamorizar a pobreza. Talvez por cada vez mais compararmos a nossa vida à de centenas ou milhares de outras nas redes sociais, das quais só vemos uma colagem de “melhores momentos”, há um certo descontentamento impossível de apaziguar.
Quão perfeita parece ser a vida de quem tem uma cabaninha à beira mar, com fruta e legumes no quintal, peixe fresco e umas galinhas a passear livremente?” “Quão felizes são aquelas pessoas com tão pouco”, uma frase feita, recorrente.
Contudo, esquecemo-nos de ler nas entrelinhas, o que realmente significa viver num lugar como o Príncipe.
Significa perder a mãe numa travessia de barco entre São Tomé e o Príncipe.
Significa perder um filho com poucos anos de idade, possivelmente devido a uma doença erradicada na Europa.
Significa ficar grávida muito jovem e ter filhos para criar sem a ajuda de ninguém.
Significa ter sonhos, para nós banais, que provavelmente nunca virão a acontecer.
Estas são algumas das histórias que foram partilhadas comigo nos poucos dias em que lá estive. A vida na pobreza é tudo menos idílica e que estes testemunhos sirvam para nos fazer apreciar um bocadinho mais aquilo que temos.
Dicas rápidas
Alojamento: Como mencionei repetidamente, não podia recomendar mais o World’s View Wild Camping Salaszoi, Príncipe Island. Creio que os preços aumentaram desde que lá fui (inflação chega a todo o lado!), mas vale mesmo muito a pena. O conforto não é muito, mas tudo o resto é perfeito!
Aluguer de jipe: Se conseguires, é uma boa ideia alugar um jipe para aceder mais facilmente às praias e aproveitar os dias. Creio que todos os alojamentos podem fornecer este serviço.
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